'Lei da
terceirização é a maior derrota popular desde o golpe de 64'
Para
Ruy Braga, professor da USP especializado em sociologia do trabalho, Projeto de
Lei 4330 completa desmonte iniciado por FHC e sela "início do governo do
PMDB"
Especialista em
sociologia do trabalho, Ruy Braga traça um cenário delicado para os próximos
quatro anos: salários 30% mais baixos para 18 milhões de pessoas. Até 2020, a
arrecadação federal despencaria, afetando o consumo e os programas de
distribuição de renda. De um lado, estaria o desemprego. De outro, lucros
desvinculados do aumento das vendas. Para o professor da Universidade de São
Paulo (USP), a aprovação do texto base do Projeto de Lei 4330/04, que facilita
a terceirização de trabalhadores, completa o desmonte dos direitos trabalhistas
iniciado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na década de 90. “Será a
maior derrota popular desde o golpe de 64”, avalia o professor em entrevista a
CartaCapital.
Embora o projeto
não seja do governo, Braga não poupa a presidenta e o PT pelo cenário político
que propiciou sua aprovação. Ele cita as restrições ao Seguro Desemprego,
sancionadas pelo governo no final de 2014, como o combustível usado pelo PMDB
para engatar outras propostas desfavoráveis ao trabalhador, e ironiza: “Esse
projeto sela o fim do governo do PT e o início do governo do PMDB. Dilma está
terceirizando seu mandato”.
LEIA A ENTREVISTA COMPLETA:
CartaCapital:
Uma lei para regular o setor é mesmo necessária?
Ruy
Braga: Não. A Súmula do TST [Tribunal
Superior do Trabalho] pacificou na Justiça o consenso de que não se pode
terceirizar as atividades-fim. O que acontece é que as empresas não se
conformam com esse fato. Não há um problema legal. Já há regulamentação. O que
existe são interesses de empresas que desejam aumentar seus lucros.
CC:
Qual a diferença entre atividade-meio e atividade-fim?
RB: Uma empresa é composta por diferentes grupos
de trabalhadores. Alguns cuidam do produto ou serviço vendido pela companhia,
enquanto outros gravitam em torno dessa finalidade empresarial. Em uma escola,
a finalidade é educar. O professor é um trabalhador-fim. Quem mexe com
segurança, limpeza e informática, por exemplo, trabalha com atividades-meio.
CC: O
desemprego cai ou aumenta com as terceirizações?
RB: O desemprego aumenta. Basta dizer que um
trabalhador terceirizado trabalha em média três horas a mais. Isso significa
que menos funcionários são necessários: deve haver redução nas contratações e
prováveis demissões.
CC:
Quantas pessoas devem perder a estabilidade?
RB: Hoje o mercado formal de trabalho tem 50
milhões de pessoas com carteira assinada. Dessas, 12 milhões são terceirizadas.
Se o projeto for transformado em lei, esse número deve chegar a 30 milhões em
quatro ou cinco anos. Estou descontando dessa conta a massa de trabalhadores no
serviço público, cuja terceirização é menor, as categorias que de fato obtêm
representação sindical forte, que podem minimizar os efeitos da terceirização,
e os trabalhadores qualificados.
CC:
Por que os trabalhadores pouco qualificados correm maior risco?
RB: O mercado de trabalho no Brasil se especializou em mão
de obra semiqualificada, que paga até 1,5 salário mínimo. Quando as empresas
terceirizam, elas começam por esses funcionários. Quando for permitido à
companhia terceirizar todas as suas atividades, quem for pouco qualificado
mudará de status profissional.
CC:
Como se saíram os países que facilitaram as terceirizações?
RB: Portugal é um exemplo típico. O Banco de
Portugal publicou no final de 2014 um estudo informando que, de cada dez postos
criados após a flexibilização, seis eram voltados para estagiários ou trabalho
precário. O resultado é um aumento exponencial de portugueses imigrando. Ao
contrário do que dizem as empresas, essa medida fecha postos, diminui a
remuneração, prejudica a sindicalização de trabalhadores, bloqueia o acesso a
direitos trabalhistas e aumenta o número de mortes e acidentes no trabalho
porque a rigidez da fiscalização também é menor por empresas subcontratadas.
CC: E
não há ganhos?
RB: Há, o das empresas. Não há outro beneficiário.
Elas diminuem encargos e aumentam seus lucros.
CC: A
arrecadação de impostos pode ser afetada?
RB: No Brasil, o trabalhador terceirizado recebe 30% menos
do que aquele diretamente contratado. Com o avanço das terceirizações, o Estado
naturalmente arrecadará menos. O recolhimento de PIS, Cofins e do FGTS também
vão reduzir porque as terceirizadas são reconhecidas por recolher do
trabalhador mas não repassar para a União. O Estado também terá mais
dificuldade em fiscalizar a quantidade de empresas que passará a subcontratar
empregados. O governo sabe disso.
CC:
Por que a terceirização aumenta a rotatividade de trabalhadores?
RB: As empresas contratam jovens, aproveitam a
motivação inicial e aos poucos aumentam as exigências. Quando a rotina derruba
a produtividade, esses funcionários são demitidos e outros são contratados.
Essa prática pressiona a massa salarial porque a cada demissão alguém é
contratado por um salário menor. A rotatividade vem aumentando ano após ano.
Hoje, ela está em torno de 57%, mas alcança 76% no setor de serviços. O Projeto
de Lei 4330 prevê a chamada "flexibilização global", um incentivo a
essa rotatividade.
CC:
Qual o perfil do trabalhador que deve ser terceirizado?
RB: Nos últimos 12 anos, o público que entrou no
mercado de trabalho é composto por: mulheres (63%), não brancos (70%) e jovens.
Houve um avanço de contratados com idade entre 18 e 25 anos. Serão esses os
maiores afetados. Embora os últimos anos tenham sido um período de inclusão, a
estrutura econômica e social brasileira não exige qualificações raras. O perfil
dos empregos na agroindústria, comércio e indústria pesada, por exemplo, é
menos qualificado e deve sofrer com a nova lei porque as empresas terceirizam
menos seus trabalhadores qualificados.
CC: O
consumo alavancou a economia nos últimos anos. Ele não pode ser afetado?
RB: Essa mudança é danosa para o consumo, o que
inevitavelmente afetará a economia e a arrecadação. Com menos impostos é
provável que o dinheiro para transferência de renda também diminua.
CC:
Qual a responsabilidade do PT e do governo Dilma por essa derrota na Câmara?
RB: O governo inaugurou essa nova fase de
restrição aos direitos trabalhistas. No final de 2014, o governo editou as
medidas provisórias 664 e 665, que endureceram o acesso ao Seguro Desemprego,
por exemplo. Evidentemente que a base governista - com PMDB e PP - iria se
sentir mais à vontade em avançar sobre mais direitos. Foi então que [o
presidente da Câmara] Eduardo Cunha resgatou o PL 4330 do Sandro Mabel, que nem
é mais deputado.
CC:
Para um partido de esquerda, essa derrota na Câmara pode ser considerada a
maior que o PT já sofreu?
RB: Eu diria que, se esse projeto se tornar lei,
será a maior derrota popular desde o golpe de 64 e o maior retrocesso em leis
trabalhistas desde que o FGTS foi criado, em 1966. Essa é a grande derrota dos
trabalhadores nos últimos anos. Ela sela o fim do governo do PT e marca o
início do governo do PMDB. A Dilma está terceirizando seu mandato.
CC: A
pressão do mercado era mesmo incontornável?
RB: Dilma deixou de ser neodesenvolvimentista a
partir do segundo ano de seu primeiro mandato. Seu governo privatizou portos,
aeroportos, intensificou a liberação de crédito para projetos duvidosos e agora
está fazendo de tudo para desonerar o custo do trabalho. O governo se voltou
contra interesses históricos dos trabalhadores. O que eu vejo é a
intensificação de um processo e não uma mudança de rota. Se havia alguma
dúvida, as pessoas agora se dão conta de que o governo está rendido ao mercado
financeiro.
CC: A
terceirização era um dos assuntos preferidos nos anos 90, mas não passou. Não é
contraditório que isso aconteça agora?
RB: O Fernando Henrique tentou acabar com a CLT
[Consolidação das Leis do Trabalho] por meio de uma reforma trabalhista que não
foi totalmente aprovada. Ele conseguiu passar a reforma previdenciária do setor
privado e a regulamentação de contratos por tempo determinado. O governo Lula
aprovou a reforma previdenciária do setor público e agora, com anos de atraso,
o segundo governo Dilma conclui a reforma iniciada por FHC.
CC:
Mas a CLT não protege também o trabalhador terceirizado?
RB: A proteção da CLT é formal, mas não acontece
no mundo real. Quem é terceirizado, além de receber menos, tem dificuldade em
se organizar sindicalmente porque 98% dos sindicatos que representam essa
classe protegem as empresas em prejuízo dos trabalhadores. Um simples dado
exemplifica: segundo o Ministério Público do Trabalho, das 36 principais
libertações de trabalhadores em situação análoga a de escravos em 2014, 35 eram
funcionários terceirizados.
CC: A
bancada patronal tem 221 parlamentares, segundo o Diap (Departamento
Intersindical de Assessoria Parlamentar). Existe alguma relação entre o tão
falado fim do financiamento privado de campanha e a aprovação desse projeto?
RB: Não há a menor dúvida. Hoje em dia é muito
simples perceber o que acontece no País. Para eleger um vereador em São Paulo
paga-se 4 milhões de reais. Para se eleger deputado estadual, são 10 milhões.
Quem banca? Quem financia cobra seus interesses, e essa hora chegou. Enquanto o
presidente da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], Paulo
Skaf, ficou circulando no Congresso durante os últimos dois dias, dando
entrevista, conversando com deputados e defendendo o projeto, sindicalistas
levavam borrachada da polícia. Esse é o retrato do Congresso brasileiro hoje:
conservador, feito de empresários, evangélicos radicais e bancada da bala.
(Fonte: http://www.cartacapital.com.br/economia,
publicado por Wanderley Preite Sobrinho, em 10/04/2015)
Nenhum comentário:
Postar um comentário