COTAS
PARA NEGROS NA POLÍTICA*
A
mais acirrada disputa presidencial das últimas décadas suscitou discussões
acaloradas sobre um país que se dividiria entre o vermelho, do PT, e o azul, do
PSDB. Poucos notaram a cor que, de fato, predominou nas urnas – o branco. Se o
mapa nacional fosse pintado de acordo com os políticos que se elegeram em
outubro, pouco restaria da imagem de nação multirracial: de cada quatro
eleitos, três se apresentam como brancos aos eleitores.
Por
Edson Sardinha*
Pela primeira vez, os candidatos
foram obrigados este ano a informar sua cor à Justiça eleitoral. O balanço final
não poderia ser mais revelador das contradições de um país que se fez, como
poucos no mundo, da mistura de raças e se cobriu historicamente sob o manto da
“democracia racial”, tese pela qual todos viveriam harmonicamente e em
igualdades de condições, independentemente de sua raça.
Passados 126 anos da Lei Áurea, que
aboliu oficialmente a escravatura, os parlamentos e o comando dos Executivos
brasileiros ainda são de acesso restrito a pretos e pardos – dois dos termos
empregados no Censo pelo IBGE para definir a cor dos brasileiros.
Embora representem mais da metade
da população e do eleitorado, esses grupos conquistaram apenas 24% das cadeiras
em disputa. Dos 1.627 candidatos eleitos, 1.229 se declararam brancos (76%). Os
pardos ficaram com 342 vagas; os pretos, com 51; os amarelos (de origem
oriental), três, e os indígenas, duas. Os dados são de levantamento da Revista
Congresso em Foco com base nas informações prestadas pelos eleitos ao Tribunal
Superior Eleitoral (TSE).
O critério utilizado pelo TSE foi o
da autodeclaração, feita em alguns casos pelo próprio candidato ou pelo
diretório partidário. A lógica das urnas repete o que se vê nas grandes
empresas e repartições públicas: quanto mais alto o cargo, menor a chance de um
negro ocupá-lo.
Dos 27 governadores eleitos, 20 são
brancos. Nenhum se diz preto ou indígena. No novo Congresso, de cada 100
cadeiras, 80 serão ocupadas por políticos que se definem como brancos. Dos 540
congressistas eleitos, 81 deputados e cinco senadores se declararam pardos e
apenas 22 eleitos para a Câmara se identificaram como pretos. No Senado, não há
um negro sequer entre os 27 recém-eleitos. Atualmente existem apenas dois que
assim se definem: Paulo Paim (PT-RS) e Magno Malta (PR-ES), ambos na metade do
mandato.
“O negro vive um apartheid social
no país em relação à representação parlamentar. Aquele mesmo modelo
segregacionista que a gente criticava na África do Sul existe por aqui de forma
clara”, critica o filósofo Alexandre Braga, diretor de comunicação da União dos
Negros pela Igualdade (Unegro) e defensor de cotas raciais para as eleições
legislativas.
Pesquisas indicam que os negros e
pardos até conseguem se candidatar em níveis próximos ao de sua representação
na sociedade. Mas, esmagados por problemas como falta de espaço nos grandes
partidos e de captação de recursos financeiros para bancar suas campanhas,
acabam engolidos pelo atual modelo eleitoral, assim como as mulheres.
“Este país é plural, mas isso não
se traduz em sua representação política, que não tem nada a ver com o povo
brasileiro”, afirma a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB-SP), reeleita para o
seu segundo mandato. “Isso acontece porque o sistema político só favorece quem tem
dinheiro. Quem não tem, fica sem representatividade e suas pautas não são
atendidas”. Além da sambista, apenas outros dois parlamentares se declaram
negros entre os 94 deputados estaduais de São Paulo.
A presença tímida de negros e
pardos nos cargos eletivos contrasta com o seu predomínio nos mapas da exclusão
social. Eles estão no topo do ranking das vítimas da violência urbana e do
contingente da população de baixa renda e escolaridade. Presidente da Comissão
da Igualdade Racial da Assembleia da Bahia, o deputado Bira Corôa (PT) acredita
que os obstáculos para o negro avançar na política começam na educação e no
emprego, cujos indicadores, em geral, são inferiores aos dos brancos.
“Apesar das conquistas sociais com
as cotas e a melhor distribuição de renda, a estruturação dos poderes ainda é
racista”, critica o deputado estadual, que ficou na primeira suplência de sua
coligação. Há apenas dois negros entre os 63 eleitos para o Legislativo baiano,
estado que reúne a maior população preta do país.
Para o historiador e cientista
político Antônio Marcelo Jackson, da Universidade Federal de Ouro Preto, o
racismo brasileiro é mais “sofisticado” do que o praticado em países onde
negros e brancos historicamente não se misturam.
Para ele, teses racistas ainda do
século 19, que associam o branco ao trabalho intelectual e o negro e o índio à
força física e às emoções, ainda exercem influência sobre o imaginário do
eleitor brasileiro. “Nosso tipo de racismo não é de segregação espacial, como
nos Estados Unidos e na África do Sul. Ele transita por outras esferas, como
quem está ou não no poder. A pessoa pode adorar um jogador ou cantor negro, mas
jamais votar em negro para cargo político”, exemplifica.
Uma das principais referências do
movimento negro no país, o frei franciscano David dos Santos entende que as
urnas evidenciam a dificuldade de grande parte dos brasileiros em assumir sua
negritude. Um problema que atinge, segundo ele, tanto parcela dos candidatos
eleitos que se declaram brancos mesmo não o sendo, quanto os eleitores que não
votam em candidatos negros por não se sentirem por eles representados.
“Não culpo aqueles que não se
assumem porque eles também são vítimas da sociedade que implantou em todos nós
a ideologia do embranquecimento, que está impregnada na mente do povo negro”,
afirma o religioso, presidente da ONG Educafro e ativista das cotas raciais.
Para David, a mudança dessa
realidade está em curso com o número crescente de jovens negros que saem
formados das faculdades. Segundo ele, essa nova geração terá maiores condições
de se fazer representar politicamente porque sabe da importância de reconhecer
sua origem.
“Hoje o negro não vota em negro
porque não assume sua negritude. Quando crescer sua consciência vai balançar o
poder branco. Quem não assume sua cor não tem condição de representar seu povo.
A exclusão dos excluídos faz parte do jogo universal de manter quebrados os
quebrados”, considera.
*Título
apresentado pelo site: http://sinteregionaldecaico.blogspot.com.br
(Fonte: Revista Congresso em Foco)
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